quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Assédio nosso de cada dia

 Ele me encarou por um bom tempo. Não precisei olhar pra saber. Senti aquele olhar invasivo e nojento. Fiquei apavorada, mas não falei nada. Tentei não pensar muito. Não ia demorar. Logo estaria em casa. Não me preocupei. Ele não parou de me secar. Se mexeu ao meu lado. Sua perna tocou na minha. Me afastei. Estava nervosa, mas não reagi. Preferi me reprimir. Não era nada, pensei. O ônibus vazio, mas ele sentou ao meu lado. Pediu licença, sorriu. Cedi um espaço, ele passou e sentou. Desde então ficou me examinando, me encarando, me comendo com os olhos como um urubu sedento por lixo. Seu braço deslizou no meu, me afastei novamente. Eu já estava sentando quase na ponta do assento. Pigarriei, incomodada. Ele não pareceu se importar, na verdade estava gostando da situação. De repente soltou um "Você é muito bonita, sabia?". Congelei. Constrangida disse um obrigada baixinho, minha cabeça abaixada. Ele sorriu outra vez. O ônibus em movimento deu um freada brusca para não avançar no sinal vermelho. O corpo dele veio pro meu lado de imediato e ele tocou nos meus seios. Olhei assustada pra ele, dizendo "O que você pensa que está fazendo?". Ele respondeu que nada, que foi culpa do motorista, e se sentou no banco direito. Baixei a cabeça de novo, meu coração acelerado. Queria só chegar em casa. Queria só chegar em casa. Só isso. Me levantei e sentei do outro lado. Fui rápida, sem jeito. Sentei confortável na cadeira ao lado da janela. Agora estaria tudo bem, pensei. Olhei pro tal homem rapidamente, ele me encarava com raiva. Seu olhar era sinistro. Arrepiei. Se levantou e sentou do meu lado de novo, mas dessa vez sussurrou algo só pra mim: " Acho bom você ficar quietinha". Sua mão tocou a minha coxa. "Eu tenho uma coisa aqui, você vai se machucar se resistir". Meu peito esfriou, minha garganta secou, meu estômago doeu. Tremi por dentro. Estava apavorada. Por instinto me levantei. Gritei alto por ajuda. Ele arregalou os olhos, se levantou e foi andando pra trás do ônibus . Puxou a cordinha pra descer. Eu gritei de novo, uma senhora foi até mim. O ônibus parou, ele desceu. Eu comecei a chorar, a mulher nada entendeu. Ela me perguntava o que tinha acontecido, mas eu não conseguia responder. As lágrimas caiam, e eu me sentia sozinha. Desamparada. E esse foi só mais um dos inúmeros dias dos assédios que me rodeava.


A.F.

domingo, 1 de novembro de 2020

Trespass



O tiro que atingiu meu coração.
Com feição de anjo, beleza pura.
Chegou e pelo espelho pude enxergar,
A letalidade daquele seu olhar.
Parecia miragem.
Parecia amor.
Brilhando pra sempre em mim.
Você me cegou.
E eu me joguei e me afoguei.
Para encontrar você e te seguir.
Era a caça e o caçador.
Era intenso, rude, fatal.
Era só você e eu nessa fantasia.
Na nossa zona perigosa.
Fui atraída para sua água.
Enfeitiçada pela sua brisa.
Não que fosse totalmente inocente.
Deixei o medo de fora.
Mal comportada e sua, gemia.
Nesses sonhos que me perdia.
Acordei e percebi por fim,
Você não era um heroi 
Nem tão pouco vilão.
Você só era você.
O alguém que todo mundo quer ter.
Você esse meu alguém.
Que me abraça e diz amém.
Olha pro céu e sorri também.
Jura por nós que será pra sempre assim.
Doce voz que canta.
Diz que sou a sua inspiração.
Entre nós existe uma chama.
Magnetismo que nos atrai.
Desejo que inflama.
Não posso perder você.
Seria como me perder, afinal,
No meio da noite você me chama
Me beija, me ama
Dizendo que essa sensação é especial.
Afirmando o que temos de melhor.
Por sua causa a noite linda está.
Vejo você de novo e melhor.
A cada toque, a cada canção no ar.
Pouco me importo de começar do zero.
Vale à pena se é com você.
Você invadiu meu coração.
Não tenho mais nada à perder.

A.F.





Pensamentos nostálgicos



Estou deitada.
Cabeça à mil.
Pensamentos nostálgicos.
Voltei nos tempos azuis.
Quando brincava e sorria.
Acreditava em tudo.
Era inocente e não sabia.
Corria por entre as flores.
O aroma delas no meu vestido rosa.
A sensação de poder.
Continuar e não cansar as pernas.
Aquele calor dentro do peito.
Sentir que só basta viver.
E as cores passaram.
Os dias cinzas chegaram.
Levando com eles minha energia.
Minha inocência perdida.
As dúvidas e todas as perguntas.
Sentimento de que não podia mais.
Que era tarde.
Que a noite jaz.
E eu dormi antes das estrelas.
Meus olhos vermelhos.
As cartas no chão e sujas.
Meu batom vermelho.
A cortina encobrindo a luz.
Era tudo que eu sentia.
Que nada mais era igual.
Que eu não mais poderia amar.
E minha mente voa.
Deitada aqui.
Olhando pro teto.
As sombras ondulando na parede.
A vela acesa.
Ouvindo uma canção qualquer.
Pensando na vida.
Em tudo que ela foi um dia.
Em tudo que ela merecia ser.


A.F.